segunda-feira, 18 de agosto de 2008

AS NOVAS FAMÍLIAS

ENTREVISTA COM O DESEMBARGADOR NAGIB SLAIBI FILHO


O que o nosso ordenamento jurídico entende por família? Quais as modalidades de entidade familiar abrangidas pela lei? E quanto às novas, controvertidas justamente por ofenderem um dos institutos basilares da nossa sociedade: o matrimônio?
O termo família vem de famulus, que em Latim significa servo, servidor, ou, provedor, na linguagem deste século XXI. Assim, família significa o grupo social que atende às nossas necessidades mais imediatas e básicas. Daí se extrai a importância da família para o indivíduo, não só na sua fase de formação como criança e adolescente (Constituição, art. 227), como na fase adulta e produtiva (art. 226), e ainda como idoso (Constituição, art. 230). Enfim, a pessoa humana, salvo raríssimas exceções, sempre está imersa em algum grupo familiar durante toda a sua existência.
Mas não são só as famílias previstas e regulamentadas pela Lei que existem, porque o legislador não tem a capacidade de prever todas as situações, deixando aos juízes o poder de complementar ou integrar o ordenamento jurídico. Neste sentido, dispõe o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e o art. 126 do Código de Processo Civil: o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lei, caber-lhe-á aplicar as normas legais (as regras de conduta previstas no texto legal), não as havendo a analogia (a situação fática similar prevista na lei), os costumes e os princípios gerais do Direito.
E complementa o art. 127 da lei processual que somente quando autorizado pela lei poderá o juiz julgar por eqüidade, isto é, afastar o critério da legalidade do art. 126 e julgar a causa atendendo a critérios de oportunidade e conveniência, como, aliás, se refere o Código de Processo Civil, no art. 1109, ao se referir à jurisdição voluntária.
Há quase 30 anos, o Professor Silvio Rodrigues apontava a existência de diversas famílias e as conseqüências jurídicas delas advindas, embora nem todas tenham sido reguladas pela Lei como o casamento.
Aliás, a regulação legal do casamento refere-se principalmente à celebração do matrimônio e ao regime dos bens, pois os demais aspectos resolvem-se pelo que dispõe o art. 1566, colocando como deveres de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca, a vida em comum, no domicílio conjugal, a mútua assistência, o sustento, guarda e educação dos filhos e o respeito e consideração mútuos; tais aspectos somente podem ser apreciados pelo juiz em cada caso sob julgamento, levando em conta a personalidade dos cônjuges, os costumes locais e as características individuais e comuns do relacionamento.
Aliás, desde o Direito Romano e passando pela influência da Igreja Católica, mantido o mesmo padrão pelo Código Civil francês de 1804 e pelos nossos Códigos Civis de 1916 e 2002, o primeiro modo de organização da família é o casamento, conceituado no art. 1.511 deste último: O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Consta ainda do art. 1.512: O casamento é civil e gratuita a sua celebração.
Vê-se, assim, que o casamento é o reconhecimento oficial, pelo Estado e pela sociedade, da união entre o homem e a mulher, gerando efeitos jurídicos em decorrência do ato administrativo que é o casamento, em que o Estado reconhece a união e o juiz proclama solenemente que em nome da Lei eu os declaro marido e mulher.
Mas há outras famílias que decorrem da simples situação fática e cuja formação o legislador não formalizou tão solenemente como o casamento. Diziam os romanos que ex facto oritur jus, isto é, do fato nasce o direito.
O Direito que regula as famílias está menos na Lei e muito mais nos costumes sociais. Jean Cruet, em 1908, ao escrever sobre "A vida do Direito e a inutilidade das Leis", pôde afirmar que vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei, nunca se viu a lei reformar a sociedade.
A família constituída entre pais e filhos decorre do nascimento ou da adoção (Constituição, art. 227; Estatuto da Criança e do Adolescente e Código Civil). A família que cerca e protege o idoso (Constituição, art. 230; Estatuto do Idoso) nem sempre está fundada em laços de sangue. A união estável (Constituição, art. 226, e Código Civil) entre o homem e a mulher constitui uma relação de fato a que o Direito concede efeitos jurídicos.
A denominada união estável (antigamente união livre, ou concubinato) foi reconhecida através de reiteradas decisões dos juízes, que assim supriam a injustiça das disposições legais da época que recusavam qualquer efeito a uniões entre o homem e a mulher que não decorressem de prévio casamento e que, na verdade, traduziam o predomínio jurídico da família patriarcal e patrimonialista prevista pelas leis civis.
Dispõe o art. 1.727 do Código Civil: As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato. Note que tal dispositivo legal não exclui expressamente o direito dos concubinos aos frutos decorrentes de seu relacionamento. Aliás, o texto legal não poderia dizer que do concubinato não resultam direitos sob pena de violação ao princípio de acesso à Justiça e à proibição de enriquecimento sem causa. Imagine, por exemplo, um homem casado cuja esposa viva no exterior e que continua a ter relacionamento com ele, sem que estejam separados de fato. Se ele tiver aqui no Brasil uma companheira, esta seria tecnicamente uma concubina, mas não poderia o juiz excluir eventualmente os direitos que para ela decorreriam da união.
Aliás, há quase quarenta anos, o Supremo Tribunal Federal publicou a Súmula 382, nos seguintes termos: A vida em comum sob o mesmo teto more uxório não é indispensável à caracterização do concubinato. Os precedentes que fundamentaram a súmula foram, justamente, os casos de estrangeiros casados no exterior que aqui vinham para trabalhar e mandar dinheiro para a esposa e filhos em outros países. Parece inviável, neste início de século, sob o regime da Constituição de 1988, dita a Constituição-cidadã, que pudessem rejeitar a lição já indelével daqueles antigos magistrados.
Outra família que tem sido judicialmente reconhecida é a família homossexual ou homoafetiva, constituída por pessoas do mesmo sexo.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por seu Órgão Especial, por 24 votos a 1, reconheceu em 2007 a constitucionalidade de disposição da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro que assegura pensão por morte ao companheiro homossexual.
No caso do filho da cantora Cássia Eller, o juiz concedeu a guarda à companheira dela, tendo em vista o estudo do caso por profissionais técnicos que afirmaram que assim seria melhor para os interesses da criança, como exige o art. 227 da Constituição.
Desmentindo a afirmação de que a sociedade ainda mantém o núcleo familiar no casamento, o IBGE, a cada censo, informa o gradual aumento das famílias monoparentais, isto é, em que as crianças são criadas por um dos pais genéticos ou por pais afetivos, sem vínculo de sangue.
Enfim, o legislador constitucional ou ordinário não tem capacidade de prever nos frios textos legais todos os relacionamentos familiares que eventualmente surgem. Incumbe ao Juiz, na função institucional de dirimir os conflitos de interesses, de resolver os mesmos sem perder de vista o princípio da dignidade da pessoa humana.

Como deve proceder o magistrado diante de uma questão complexa que envolve aspectos religiosos? Segue sua convicção pessoal ou procura atender aos anseios da sociedade?
Desde a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Estado brasileiro é laico, isto é, não tem vinculação oficial com qualquer religião nem pode discriminar uma em desfavor da outra.
Não se afirme que a laicidade corresponda ao desprezo constitucional pelo Criador, mesmo porque este figura no preâmbulo da Constituição, e o sentimento religioso está arraigado na sociedade, em diversos ramos.
Como vimos no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em junho deste ano da ADI nº 3.510, sobre a Lei de Biossegurança, em seu art. 5º, que dispõe sobre pesquisas com embriões humanos, a perspectiva religiosa pode até mesmo permear a convicção do juiz, mas ele não pode fundamentar a sua decisão deixando que a mesma assuma uma supremacia sobre os demais interesses e valores em confronto no julgamento.
Embora não tenha sido eleito diretamente como os membros dos Poderes Legislativo e Executivo, em nosso país como nos outros países civilizados, o juiz é autoridade pública e fonte do Poder Público, e deve necessariamente atender aos padrões existentes nos diversos setores e momentos da sociedade.
Em fevereiro de 2008, o Arcebispo de Cantuária, líder religioso da Igreja Anglicana, fez proposta controvertida até para os padrões de liberdade que tanto prezam os britânicos: os juízes, no julgamento de causas como as de relações familiares entre muçulmanos fundamentalistas, deveria atender às normas existentes na cultura específica, como, no caso, o Alcorão e a Suna, em vez de aplicar os padrões ditos comuns das normas britânicas. A proposta do líder religioso fundamentou-se justamente no direito que é inerente a todo o ser humano, referente à preservação da própria identidade cultural, social, econômica etc., que o distingue da imensa multidão de seus semelhantes. Sobre o direito da identidade, tive a oportunidade de escrever artigo a respeito, intitulado “Igualdade, identidade e direito à diferença: os múltiplos estatutos jurídicos do cidadão do século XXI”, que pode ser consultado em minha página virtual (http://www.nagib.net/).

Há empecilhos à adoção por pessoa solteira?
Em absoluto. Em se tratando de adoção de pessoa maior e capaz, o tema é regulado pelo Código Civil, que o resolve, com poucas restrições, em favor da autonomia da vontade das partes, de forma contratual. Em se tratando de criança ou adolescente, o tema é tratado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que obedece não só a declarações internacionais de proteção de crianças e adolescentes, como ao disposto no art. 227 da Constituição, que assegura, com absoluta prioridade, a proteção do interesse da pessoa em formação.

A união homoafetiva é considerada união estável ou sociedade de fato?
Não é união estável porque esta é conceituada no art. 1.723 do Código Civil e não apresenta, na legislação, salvo raríssimas exceções, específicas disposições em sua proteção. Foi a Justiça Federal, em ação civil pública posta pelo Ministério Público federal, que mandou o INSS conceder pensão por morte de companheiro homossexual, como se pode ver no sítio www.inss.gov.br, quanto ao formulário de requerimento que lá se encontra.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006), em seu art. 5º, diz que a mesma é aplicável independentemente de opção sexual. Enfim, o Estatuto da relação homoafetiva existe, mas ainda não foi positivado em lei, pois as normas que decorrem de tal relação foram construídas jurisprudencialmente, em lenta evolução, como aconteceu, em nosso país, com a proteção dos direitos da companheira. O legislador, nestes casos, vem a reboque do avanço judicial.

“Os meus, os seus, os nossos filhos” assim é o novo tipo de família que tem se tornado cada vez mais comum. Por que esta nova família é tão bem aceita? Será um repúdio à velha prática de pais que abandonam afetivamente os filhos havidos de casamento anterior?
Não creio que decorra de um repúdio a pais insensíveis ou desnaturados, mas dos aspectos psicológicos e afetivos que unem as crianças às suas famílias, genéticas ou substitutas. Aliás, neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente permite ao juiz diversas fórmulas de proteção à criança como meio de família substituta, podendo o juiz, em cada caso, de acordo com a situação e após os estudos por equipes técnicas, optar pela solução mais conveniente à pessoa em formação.

Fonte: Matéria publicada na Revista Eletrônica Interação n. 19 (http://www.tj.rj.gov.br/ / Onde Encontro / Banco do Conhecimento)

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